Casarão foi feito com óleo de baleia

FOLHA DE S. PAULO                 16/10/2005

 

 

         Quando a lajota avermelhada do piso se soltou, Elza não se abalou. Habilidosa, ela desenhou na argamassa recém – exposta arabescos sem forma. A mesma preocupação com os detalhes se nota no cuidado com que grampeou os tecidos ás ripas de madeira para segu rar o forro apodrecido.

         Com infiltração e rachaduras.

         Assim se encontra o casarão de número 595 da rua Rui Barbosa, na Bela Vista, na região central de São Paulo, tombado pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo).

Sem pensão, a artista plástica Elza Maria Prado Ferreira da Rocha, 53, depende do aluguel dos quartos do andar de baixo da casa onde mora para ter renda no fim do mês. Dos oito cômodos destinados á locação, seis estão ocupados por dez inquilinos, o que lhe permite juntar cerca de R$ 1.000 no fim do mês. Os moradores, e mais um dos sete filhos de Elza que moram na edícula, dividem os dois banheiros do andar térreo. Há duas pias no quintal, que também precisam ser compartilhadas.

         No andar de cima, Elza vive com um filho e mais dois netos, de três e um ano. Um dos cômodos virou cozinha. A pia fica no corredor. “Não sei por que é aqui.

         Só sei que não posso mudar por causa do cano”, explica, sem jeito.

         Ela lamenta o estado de conservação da casa onde nasceu e que mais tarde herdou da avó. Datado de 1923, o imóvel foi construído com areia, óleo de baleia e sal grosso, conta. “Desde quando minha avó comprou a casa, em 1950, ela fez daqui uma pensão. Mas era diferente, havia uma sala de jantar, onde eram servidas as refeições para os inquilinos.”

         Criada em um meio cultural influente, Elza foi casada com um músico. Soprano, ela também fazia apresentações. “Participei de musicais, como Jesus Cristo Superstar”, re lembra nostálgica.

         Por ser um imóvel tombado, Elza poderia se beneficiar de políticas de incentivos, como isenção de IPTU por determinado tempo, para reformar a casa.

        “Mas e para conseguir o dinheiro?”, indaga. “E mão-de-obra também é cara, precisa ser especializada.” Em seguida, aponta para os degraus da entrada: “É tudo mármore de Carrara”.

         Separados por uma igreja batista, construída no terreno antes ocupado por duas casas que compunham a série de oito imóveis de fachadas idênticas, o casarão de dona Elza e o de número 613 da rua têm algo a mais em comum além da arquitetura. Lá também funciona um cortiço.

         São nove famílias vivendo em 12 cômodos, alguns no porão da casa, onde o cheiro de umidade chega a incomodar. Há 12 anos em São Paulo e há três vivendo nesse cortiço, a baiana Darina Souza Gomes, 35, diz que agora a situação está bem melhor. “Saí daquele quartinho no porão e me mudei para esse aqui, muito mais arejado”, aponta para as janelonas que dão para a rua. “Meu filho nem teve mais bronquite”, diz, feliz com o estado de saúde de Gregory, 5.

        “Agora estou mais tranqüila. Até a luz foi religada depois de um mês na escuridão. Foi falta de pagamento mesmo.”